terça-feira, 17 de junho de 2008

UMA QUESTÃO DE DENTADURA

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Raramente passo a manhã sem saudar Agripinino “Rio Grande” e o seu grande sorriso matinal quando me trás a torrada, o galão e o café a escaldar – para ficar logo despachado.

Agripino é um pai de família vindo do Brasil, do Rio Grande do Sul, que chegou a Portugal “mesmo duro” (teso) e que singrou em Portugal. “Chamou” então a família para cá e agora já tem mais uma menina “que é portuga”, como ele gosta de dizer.
Agripino conseguiu comprar o café existente no prédio ao lado de onde vivo e fez de um estabelecimento deserto, “sem jeito”, o melhor café e restaurante da zona com a vantagem de nos sentirmos em família. Todos ganhamos com isso e Iricema, a filhota “portuga”, ainda mais, já que tem a atenção de todos os clientes que a vêem todos os dias e também dos que vão aparecendo quando descobrem o lugar aprazível em tudo, até nos bifes de “krok”, uma especialidade da casa que é importada em cru directamente do Brasil. Um espanto… e mais não digo… porque é para os amigos e “pessoal seguro”.

Agora, que apresentei minimamente Agripino, acho que já dá para avançar na prosa.
Esta manhã fui dar com Agripino sem sorriso. Macambúzio e a expressar-se por monossílabos e grunhidos. Mal disposto, mal-humorado, triste.

- Oh Agripino, o que é que tens hoje?
Perguntei-lhe, sorrindo-lhe sem dentes, porque me tinha esquecido da prótese dentária ao sair à pressa para beber o cafezinho.
- Tenho o mesmo de todos os dias, galão, torrada e café.
Mas que resposta treslouca era aquela? O Agripino estava mesmo mal.
- Oh rapaz, o que pergunto é o que tens de tão incomodativo que te ponha assim tão trombudo, tão triste!
Quase que tive de fazer o desenho na parede para ele perceber e olhar para mim.
- Ora, estou assim porque estamos a assistir ao fim do mundo. Este mundo está maluco, ainda acaba à dentada. Não vê o que se passa à nossa volta?
Já era qualquer coisa. O Agripino estava a responder e a fazer-me uma pergunta.
- Fim do mundo, maluco, à dentada, à nossa volta?! Ora, e por isso estás triste? O que é que hoje se passa de diferente dos outros dias?
- Ah, hoje está pior!
O Agripino estava mesmo a ver as coisas mal paradas. Estava já a ver o fim do mundo a acabar à dentada. Livra.
E foi saindo do balcão com o jornal em riste, pousando-o na mesa, com um gesto largo de mãos a varrer o espaço imediatamente acima do jornal indicando as parangonas e mais uma pequena notícia em caixinha, pedindo-me:
- Olha lá, assome-se e veja.
E eu vi, e li. Dizia a notícia:

CADELA FICA SEM PARTE DE FORTUNA HERDADA DE DONA

Nova Iorque, 17 Jun (Lusa) - "Trouble (Aborrecimento)", uma cadela que recebeu 7,7 milhões de euros de herança da sua dona, foi despojada de uma grande parte da fortuna por um tribunal de Nova Iorque, nos Estados Unidos.
Uma juíza de Manhattan decidiu retirar 6,4 milhões de euros ao bicho para os atribuir a uma associação de caridade, noticiou segunda-feira o jornal New York Post.
Em contrapartida, Renée Roth deliberou que dois netos deserdados pela mesma mulher, falecida em Agosto de 2007 com 87 anos, receberiam 3,8 milhões de euros.
Segundo a magistrada, Leona Helmsley, viúva do magnata do imobiliário Harry Helmsley, não estaria em pleno uso de todas as suas faculdades mentais quando redigiu o testamento.
A sua fortuna estava avaliada em 1,6 mil milhões de euros, de acordo com a revista norte-americana Forbes, e incluía o famoso edifício Empire State Building. - ER -Lusa/Fim

Percebi. Não era caso para menos. Depois de uma notícia destas dá para ficar mesmo mal disposto. O Agripino tinha muita razão em estar a dizer que era o fim do mundo.
Então, uma ricaça maluca deixa em testamento milhões de euros a uma cadela e não estamos no fim do mundo?
Com a fome que vai por este mundo ela faz uma destas?
Teve razão a juíza em deliberar como deliberou, retirar o “bolo” da fortuna à cadela (certamente acautelou o bem-estar da cadela). Pena foi que também a juíza padecesse um pouco de loucura e decidisse reforçar ainda mais as contas bancárias dos dois netos com uns milhões. É que os netos certamente já tinham mais do que o suficiente para viverem à tripa forra, como a maluca da avó, e provavelmente também vão deixar a fortuna aos cães.
- Tens razão Agripino, vou mas é pôr os dentes antes que este mundo acabe à dentada!
Gritei-lhe já na porta, enquanto me encaminhava apressado para reaver a minha dentadura.
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1 comentário:

Anónimo disse...

Este António bem disposto e que me dispõe bem é que me agrada muitissimo.
O António escreve muito bem estes "quadros". Adoro.

Gila